Como professora e como professora de História, acredito que a valorização da memória individual e coletiva contribuem para a construção da cultura de forma singular, porém com uma capacidade muito grande de mudar a realidade presente, por causa deste potencial muitas vezes as memórias são destruídas deliberadamente pelo grupo social dominante. Um povo sem memória não compreende o processo histórico, bem como não saberá identificar qual o seu papel na sociedade.
A escola tem o papel de ensinar e preservar a cultura. Desta forma nada melhor que o espaço escolar para trazer aos alunos, atividades que o façam lembrar de suas memórias, que pesquisam as memórias de pais, tios, avós. Que possam através da pesquisa conhecer as memórias locais e regionais e transformar essa memorias em conhecimento.
Isso pode ser realizado através de pesquisas individuais, coletivas, pessoalmente ou virtual, o importante e buscar a memória dos estudantes valorizando cada fato, por mais simples que são estas memórias preservadas que constroem a história de um povo.
Vou deixar a baixo um memoria pessoal, que foi muito importante no meu processo escolar e sugiro que professores ao retornarem as aulas usem e abusem da oportunidade de conhecer a história individual dos alunos e de seus familiares e a partir daí a história da própria cidade, estado, pais chegando a história da humanidade. Que hoje se encontra em várias encruzilhadas, necessitando de atores seguros para construir os próximos capítulos.
A ANSIEDADE DO PRIMEIRO DIA
Sempre é e será assim. Todo começo gera muita expectativa e muitos sentimentos.
Parece que foi ontem meu primeiro dia de aula na E. E. Senador Robert Kennedy, em São Bernardo do Campo, SP, aliás um nome comum de escola na época da ditadura militar; era o ano de 1976. Isso já faz algum tempo, mas nem tanto, as lembranças estão tão presentes, que parece que aconteceu na semana passada.
Uns dias antes de começar as aulas, haveria a tão famosa compra do material escolar. Bem diferente dos dias de hoje, mas a expectativa com certeza é a mesma.
Não pensem vocês que as crianças daquela época acompanhavam seus pais nesta tarefa. Geralmente o material era comprado em quantidade suficiente para o ano todo, assim o preço era melhor. Éramos quatro meninas ansiosas para ver o que eles trariam.
Quando meus pais chegaram em casa foi uma festa. Tudo novinho e foi dividido de acordo com a necessidade de cada uma, apesar de muitos atritos para se chegar a esta equação. O restante ficava guardado a sete chaves, para ser usado durante o ano quando fosse necessário.
Outra parte do material viria da doação da empresa onde meu pai trabalhava. E no início das aulas a escola também nos ajudava. Éramos alunas da Caixa. Quem já foi da caixa sabe do que eu estou falando e provavelmente nunca se esquecerá.
Depois de ver os cadernos, lápis de cor, régua, borracha, plástico quadriculado para encapar os cadernos, sulfite, papel dobradura, cola, etiquetas, estojo e outras coisas maravilhosas recebi o que mais me deixou encantada.
Uma bolsa, para levar meu material, tipo pasta executiva, ela era preta, com várias divisórias internas, bolsos, botões e zíper. E o mais importante, havia uma chave. Poderia guardar tudo o que quisesse e ninguém, ninguém, nem mesmo minha irmã mais nova, poderia mexer. Quem tem irmãos mais novos entende bem o que estou falando.
Pela primeira vez teria privacidade. Uma bolsa com chaves. Só minha. Ninguém iria ver os meus segredos. Criança nesta idade já tem segredos, e acha que ninguém os conhece. Lindo lembrar-se da inocência, do início da vida, quantos sonhos, quantos desafios...
No domingo passamos a tarde arrumando, encapando, etiquetando todo o material. Foi uma festa, todos falando juntos, brincando, brigando e aprendendo como organizar tudo aquilo. Foi uma tarde maravilhosa, no final cada uma pegou o que era seu e foi se organizar.
Peguei minha bolsa. Virei a chave com o maior cuidado. Coloquei os cadernos, meu estojo de madeira novinho e mais um monte de coisa para entregar para a professora, que com certeza não iria usar no primeiro dia. Tudo em ordem, hora de dormir.
Pegar no sono naquela noite foi complicado... E chegou o tão esperado dia. Uma segunda feira de fevereiro.
Acordei, tomei café, e a hora não passava. Abri e fechei aquela bolsa vária vezes, só para conferir se não faltava nada, até que chegou a hora de me arrumar.
Banho, uniforme novo, uma saia cinza de pregas e uma camisa muito bem passada com um bolso e o brasão da escola, e um sapato preto. Muito bem engraxado, meu pai fazia questão de assumir essa tarefa.
Almocei e chegou a hora tão espera de ir para a escola. O coração estava acelerado. Era o primeiro dia de aula da primeira série. Peguei minha bolsa preta e sai com minha irmã mais velha. Sentia-me gente grande, importante, orgulhosa e feliz, finalmente iria aprender a ler e escrever.
Fui cantarolando e querendo correr, levando bronca o caminho todo. Era para ficar do lado da minha irmã. Pegar na mão dela para atravessar a rua, olhar o caminho com atenção. As ruas eram de terra, não se via um único carro, não havia perigo, na minha cabeça a situação estava sob controle. Depois de 20 min de caminhada, enfim lá estava a escola.
Um prédio enorme, dois pavilhões com 24 classes na parte superior, quatro lances de escada. Muitos alunos, muitas salas, muitos banheiros, muitos lugares proibidos e uma cantina maravilhosa. Lembro-me bem das vontades de criança pobre que passei na frente daquele lugar de guloseimas.
Bateu o sinal, uma sirena muito alta. O pátio estava com a marcação das classes. Como todos sabiam a sua classe, minha irmã me colocou na fila. Uma senhora muito brava. D. Helena a diretora, pegou o microfone. O silencio se fez imediatamente. Parecia um general. Ela falava e todos em silencio e em fila a olhavam sem piscar; ela deu um sermão de uns dez minutos, para mim parecia uma eternidade e puxou uma oração. Naquele momento senti falta das minhas musiquinhas, do aconchego da EMEI que ficou para traz, percebi que tudo seria bem diferente. A frente da fila uma senhora, minha professora que se chamava Zoraide. A única Zoriade que conheci na vida.
Acabando a fala da diretora, cada fila seguiu seu caminho. Chegamos à classe. Cada um escolheu um lugar aleatório e sentou-se. A professora pôs-se a frente da sala no seu tablado de madeira e começou a falar sobre como seriam os próximos dias.
Iriamos visitar todos os ambientes da escola, depois entregar os matérias para ela guardar nos armários e aprender a escreve o cabeçalho no caderno. Que nome complicado para uma criança de sete anos.
Após sua fala, todos estávamos em total silencio. Dona Zoraide, já que tia passou a ser proibido para nós a partir daquele dia, pede para pegarmos um caderno e um lápis.
Eu mais que depressa peguei minha bolsa linda e preta, cheia de divisórias e com todo o meu material novinho, já estava pronta para aprender a ler e escrever e a coloquei no colo.
Naquele momento meu mundo caiu e percebi que a bolsa estava fechada com deveria ser, mas havia deixado a chave em casa. E os meus os olhos se encheram de água...
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