Eu nasci em 1968, isso me deixava orgulhosa, um ano que o mundo jamais se esquecerá. Nasci na cidade de São Bernardo do Campo uma cidade singular na vida política brasileira.
Cresci no meio das greves, dos movimentos e das reivindicações que exigiam mudanças para o pais
As mudanças vieram, o tempo passou e me formei Professora de História. Ser professora fazia parte de meus sonhos de infância, mas a matéria seria matemática, até entrei na Faculdade Federal de São Carlos, SP, mas optei pelo curso de humanas.
Defendia a participação da sociedade na construção da democracia e a inclusão de todos.
Achava que não tinha preconceitos, doce ilusão, mas a vida me mostrou a quanto a prática e a teoria para andarem juntas precisam de um esforço interno muito além do que se imagina. Há muitos conceitos e preconceitos construídos por séculos que estão cristalizados onde você nem espera.
Eu tive a oportunidade de trabalhar em um projeto que as escolas abriam aos finais de semana, com atividades para a comunidade.
Neste período eu conheci uma pessoa muito especial, que estava interessada em trabalhar no projeto, ele era pedagogo e poeta, estava qualificado para a vaga, ele se chamava André Herculano dos Santos. Havia uma peculiaridade, ele era cego.
Isso não o fez desistir, passou pelo processo de seleção e de perícia médica e foi aprovada, ele estava apto para a vaga. Fiquei muito feliz com a situação, ele iria trabalhar em alguma escola da cidade onde ele morava. Cidade vizinha a minha.
No dia da escolha ele optou por trabalhar onde eu trabalhava, lá ele conhecia a comunidade, os profissionais e se sentia mais seguro. Na hora o medo tomou conta de mim.
Toda a força que eu dei a ele passei a questionar. Como deixa-lo na escola sozinho? Como deixar as chaves do prédio com ele? Como deixar ele abrir e fechar a escola?
Neste momento eu conheci o meu pior lado, que não conhecia. E de verdade não gostei. Mas ele existia, estava lá e agora eu não tinha como fugir da situação.
Tinha consciência que iria travar uma briga interna e que não poderia sair do interno para não piorar as coisas.
Quando o André chegou para o seu primeiro dia de trabalho, foi tudo muito confuso; por mais que eu me esforçasse para mostrar a ele onde estavam as coisas e o explicasse como fazer o seu serviço, a insegurança me dominava. A credibilidade nele me questionava a todo instante, eu estava totalmente insegura e envergonhada. Eu nunca soube ou saberei se ele percebeu ou não os meus conflitos, mas estavam lá.
Ficamos juntos toda a manhã, haviam alunos e voluntários; chegou o horário de eu ir embora. E fui, mas confesso aqui que voltei à escola durante aquela tarde quatro vezes, circulei a quadra da escola para ver se estava tudo bem. Não entrei no prédio. Mas senti-me traindo os meus princípios.
No dia seguinte, um domingo, cheguei um pouco mais cedo que ele e para minha feliz surpresa os quadros de luz estavam com anotações em braile. Fiquei encantada e ainda mais envergonhada.
O tempo foi passando o processo de confiança aumentando e ele quebrando os meus preconceitos; após 3 meses de trabalho, em uma reunião de equipe eu de fato comecei a trata-lo como um membro de igual para igual e até discutimos e discordamos. Só aí naquele momento eu conseguiu de fato reconhecer que ele tinha plenas condições de ocupar aquela vaga.
Durante o tempo em que ele trabalhou na escola, não houve sumiço de nenhum material, o André ficava atento, parecia que via tudo, era muito caprichoso e eficiente.
Quando chegava qualquer pessoa e entrava na escola ele percebia, caso ele conhecesse a pessoa ele a chamava pelo nome, como ele identificava-as eu não sei; e se não conhecesse ia ao encontro dela para orientar em relação as regras da escola. E assim trabalhamos por quase dois anos.
Um dia depois de anos que deixamos de trabalhar juntos encontrei o André em um ponto de ónibus, parei para cumprimenta-lo, cheguei perto e falei. Olá amigo, quanto tempo, que saudades. Na hora ele me abraçou e me chamou pelo nome, ele me reconheceu automaticamente pela minha voz.
Hoje o André não está mais entre nós. Com ele aprendi que para deixar os preconceitos precisamos conscientemente trabalhar o que existe de pior dentro de nós.
Gratidão André, você me ensinou a ser menos arrogante e reconhecer as minhas limitações. https://youtu.be/AXMLEFGRyMY
Silvana Barboza
Mestre em Políticas Públicas; Especialista em Gestão; Pedagoga; Professora de História e estudante de Neuropsicopedagogia e Criadora de Conteúdo no You Tube do Canal ALOCSE
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